sábado, 12 de julho de 2008

Nem esquerda nem direita (Dissidência!)

O lúcido pensador italiano Marcello Veneziani começa um belo artigo sobre o antiglobalismo com a seguinte observação: "Se olharmos bem para eles, os anti-G8 são a esquerda em movimento: anarquistas, marxistas, radicais, católicos rebeldes ou progressistas, pacifistas, verdes, revolucionários. Centros sociais, bandeiras vermelhas. Com o complemento iconográfico de Marcos e do Che Guevara.

Imediatamente nos damos conta de que nenhum deles põe em causa o Dogma Global, a interdependência dos povos e das culturas, o melting pot e a sociedade multirracial, o fim das pátrias. São internacionalistas, humanitários, ecumenistas, globalistas. E a acrescentar a isso: quanto mais extremistas e violentos são, mais internacionalistas e anti-tradicionais se tornam".[1]

Posto isto, a oposição da esquerda à globalização é só uma postura que se esgota numa manifestação. Seattle, Génova, Nova Iorque, Porto Alegre, e acabou, "o mundo continua" como dizia Discepolin. É que a política do "progressismo", como bem observou o filósofo, também italiano, Massimo Cacciari, ordena os problemas mas não os resolve.[2]

Do mesmo se queixa o sociólogo marxista mais importante da América Latina, Heinz Dieterich Steffan, que num recente artigo refere: "Se a tarefa actual de todo o indivíduo anticapitalista é absolutamente clara: Porque é que a "esquerda" e os seus intelectuais não a assumem? Porque repetem, fórum após fórum, a mesma lengalenga sobre a maldade do neo-liberalismo e se contentam com as suas ritualizadas propostas terapêuticas inspiradas em Keynes, Tobin y Stiglitz? Porque não convertem a realidade capitalista em objecto de transformação anti-sistema, em vez de a manterem como muro de lamentações?".[3]

O fracasso rotundo da esquerda, hoje rebaptizada de "progressismo", é que, além de não ter compreendido – deglutido será o termo exacto – a derrota do "socialismo real" com a implosão soviética e com a queda do Muro, não reelaborou as suas categorias de leitura, e permanece enclausurada no mundo categorial de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e eventualmente Trotsky, fazendo arqueologia política.

A escola neo-marxista de Frankfurt, através dos esforços de Adorno, Apel, Cohen e Marcuse, termina com o publicitado Habermas e a sua teoria do consenso (sem se aperceber que o consenso sempre foi o dos poderosos entre si), e os seus discípulos James Bohman e Leo Avritzer com a sua teoria da democracia deliberativa, que como um novo nominalismo pretende resolver as injustiças políticas, económicas e sociais com palavras. Conversando numa espécie de assembleísmo permanente.

Se a esquerda está liquidada, o que dizer da direita? Pode-se esperar algo dela?
Da direita clássica, tanto do nacionalismo orgânico ou integral ao estilo de Charles Maurras, como do fascista de Mussolini ou do católico de Oliveira Salazar pouco permanece. Só trabalhos de investigação históricos e pequenos grupos políticos sem peso nas suas sociedades respectivas.

Resta então como direita o neoconservadorismo norte-americano e dos governos que lhe são afins. E desta direita liberal, a única que existe com peso político, só se pode esperar que as coisas piorem para a saúde e bem-estar dos povos.

Se isto é assim, denunciamos uma vez mais, de entre as centenas de vezes que o tentámos demonstrar, que a dicotomia esquerda/direita é estreita, para não dizer falsa, para fazer uma leitura adequada da realidade.

Hoje situar-se à esquerda ou à direita é não situar-se, é colocar-se num não-lugar, sobretudo para o pensador (recuso terminantemente o termo intelectual) que pretende elaborar um pensamento crítico. E o único método que hoje pode criar pensamento crítico é a dissidência. Dissidência não só com o pensamento único e politicamente correcto mas também e sobretudo, com a ordem constituída, com o status quo vigente.

A dissidência é estruturalmente uma categoria do pensamento popular, tal como o consenso, que, como vimos, é uma apropriação da esquerda progressista para alcançar a democracia deliberativa que tem muito de ilustrada, e também, ainda que noutro sentido, propriedade do liberalismo como acordo dos que decidem, dos poderosos (G8, Davos, FMI, Comissão Trilateral, Bilderberg, etc.).

A dissidência que se manifesta como negação tem distinto sentido no pensamento popular e no pensamento culto. Neste último, regido pela lógica da afirmação, a negação nega a existência de algo ou alguém, enquanto que no pensamento popular o que se nega não é a existência de algo ou alguém, mas antes a sua vigência. A vigência pode ser entendida como validez, como sentido. A dissidência nega o monopólio da produtividade de sentido dos grupos ou lobbies, para reservá-la ao povo no seu conjunto, para lá da partidocracia política.

A alternativa hoje é situar-se para além da esquerda e da direita. Consiste em pensar a partir de uma raiz, do nosso genius loci nas palavras de Virgílio. E não uma raiz qualquer, mas a das identidades nacionais, que formam os ecúmenos culturais ou regiões que constituem hoje o mundo. Com isto vamos para além inclusive da ideia de estado-nação, em vias de esgotamento, para penetrarmos na ideia política de grande espaço etnocultural.

É a partir destas grandes regiões que é lícito e eficaz posicionar o combate à globalização, ou americanização do mundo. Fazê-lo como pretende o progressismo: a partir do humanismo internacional dos direitos humanos, ou desde o ecumenismo religioso como ingenuamente pretendem alguns cristãos, é fazê-lo a partir de mais um universalismo. Com a agravante que o seu conteúdo encerra um aspecto laudatório, mas vazio, inverosímil e não eficaz na hora do confronto político.

Todavia este confronto está, ainda assim, a acontecer, apesar do fracasso dos pensadores em entendê-lo, através do surgimento dos diferentes populismos, que não obstante os reparos que apresentam a qualquer espírito crítico, estão a modificar, como observa Robert de Herte[4] as categorias de leitura. Assim, a oposição da esquerda clássica entre burgueses e proletários vai sendo substituída pela de povo vs. oligarquias, sobretudo financeiras, e a de esquerda e direita, pela de justiça e segurança.

Ora, do ponto de vista da esquerda progressista a crítica à globalização limita-se à não extensão dos benefícios económicos à humanidade, mas apenas a uns poucos, pois a esquerda, pelo seu carácter internacionalista não pode denunciar o efeito destruidor sobre as culturas tradicionais e sobre as identidades dos povos. A sua denúncia transforma-se assim numa reclamação formal para que a globalização esteja unida aos direitos humanos.

Em sentido contrário, é a partir dos movimentos populares que se realiza a oposição real às oligarquias transnacionais.[5] É a partir das tradições nacionais dos povos que melhor se demonstra a oposição à sociedade global sem raízes, a esse imperialismo desterritorializado de que falam Hardt e Negri. É com base na atitude não conformista que se rechaça a imposição de um pensamento único e de uma sociedade uniforme, e se denuncia a globalização como um mal em si mesmo.

O pensamento popular, quando o é de facto, parte das suas próprias raízes, não tem um saber livresco ou ilustrado. Pensa a partir de uma tradição, que é a única forma de pensar genuinamente, segundo Alasdair MacIntyre[6], dado que "uma tradição viva é uma discussão historicamente desenvolvida e socialmente encarnada". Pelo que se torna impossível aos povos e aos homens que os encarnam situarem-se fora da sua tradição. Quando o fazem desnaturalizam-se, deixam de ser o que são. São já outra coisa.

Alberto Buela
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[1] O antiglobalismo de direita. Marcello Veneziani (1955). Jornalista do Giornale e do Menssaggero e colaborador com a RAI, é autor de vários ensaios entre os quais se destacam: La rivoluzione conservatrice in Italia (1994), Processo all´Occidente (1990) y L´Antinovecento (1996). Podemo-lo incluir dentro da corrente de pensamento não-conformista.

[2] Massimo Cacciari (1944). Filósofo, deputado do PC. Presidente do Município de Veneza até 1993. Autor de vários ensaios: L´Angelo necesario (1986), Dell´Inicio (1990), Dran: Meridianos de la decisión en el pensamiento contemporáneo (1992), Geo-filosofia dell´Europa (1995). Pensador dissidente da esquerda europeia.
[3] La bancarrota de la izquierda y sus intelectuales (31-3-04). Heinz Dieterich Steffan, é sociólogo e professor na UNAM do México e colunista do diário El Universal. Promotor itinerante em todos os países da América de um novo projecto histórico do marxismo. É autor de uma trintena de livros entre os quais se destacam: El fin Del capitalismo global (1999) y La crisis de los intelectuales en América Latina (2003)

[4] Robert de Herte é o pseudónimo de Alain de Benoist (1943). Editor das revistas Eléments y Krisis e autor de inumeráveis trabalhos entre os quais devemos recordar Vu du droite (1977), Orientations pour des années décisives (1982), L´empire intérieur (1995), Au-dela des droits de l´homme (2004). É o mais importante pensador de uma corrente de pensamento não conformista, alternativa e anti-igualitarista, onde se destacam, entre outros, Guillaume Faye, Robert Steuckers, Julien Freund, Alessandro Campi, Claude Karnoouh, Tarmo Kunnas, Thomas Molnar, Dominique Venner, Pierre Vial, Javier Esparza, Giorgio Locchi, etc.

[5] Sobre a relação entre pensamento popular e negação pode-se consultar com proveito o livro La negación en el pensamiento popular (1975) do filósofo argentino Rodolfo Kusch (1922-1979), assim como o nosso trabalho: Papeles de un seminario sobre G. R. Kusch (2000). Entre os não poucos filósofos originários da Argentina (Taborda, de Anquín, Guerrero, Cossio, Rougés) Gunther Rodolfo Kusch ocupa um lugar destacado. Não só pela originalidade dos seus posicionamentos filosóficos mas principalmente porque os mesmos geraram uma corrente de pensamento através da denominada filosofia da libertação no seu ramo popular.

[6] Alasdaire MacIntyre (1929) é um filósofo escocês que vive e ensina nos Estados Unidos e que se destacou pela sua crítica à situação moral, política e social criada pelo liberalismo. Os seus trabalhos são a base de todo o pensamento comunitarista norte-americano. Os seus livros mais destacáveis são: After Virtue (1981), Whose Justice? Which Rationality? (1988), Three rival versions of moral enquiry (1990).

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