domingo, 22 de junho de 2008

Recordando Jean Cau

Esta semana passou mais um aniversário da morte do grande escritor francês Jean Cau (08/07/1925 – 18/06/1993), prémio Goncourt em 1961, com La Pitié de Dieu . De antigo assistente de Sartre e grande esperança da esquerda bem-pensante fará um percurso intelectual que o levará a uma certa direita de valores duros e politicamente incorrectos e lhe valerá a eterna condenação da “respeitável” cena intelectual francesa. Recordamos hoje, numa pequena homenagem, um excerto de uma entrevista dada por Cau a Jacques Vanden Bemden, que constitui um retrato delicioso do esquerdismo e da sua “passagem-de-idade”. (Rodrigo N.P.)

«As minhas origens são humildes. O meu pai era operário e a minha mãe mulher-a-dias e creio que em Paris eu era uma ave extraordinariamente rara que se deveria colocar numa gaiola e mostrar nas feiras: o único intelectual com origens verdadeiramente proletárias, cujo pai não é general, professor, notário, médico, director de jornal, pequeno burguês ou o que quiserem. Fiz os meus estudos no seio de um ambiente extremamente rude. Os meus avós nem sequer falavam francês, falavam a língua occitana. Do mesmo modo, quando era criança, adolescente, os meus pais falavam entre si na língua occitana, por fidelidade à sua terra, às suas origens, à sua raça, às suas infâncias. Na família éramos um pouco os sicilianos da França, como os sicilianos de Nova Iorque cujos pais e avós continuam a falar siciliano enquanto os filhos falam inglês.

Portanto, cresci num ambiente pobre, popular. Quando era um miúdo pequeno houve o Front Populaire que foi, como sabe, a grande exaltação da esquerda, e no meio onde vivia aparecia como uma espécie de aurora. Depois, quando me estou a tornar rapaz, surge a guerra, e está fora de questão, na minha família, no meu meio, ter qualquer simpatia que seja pelos alemães e pela ocupação, tal como pelo governo de Vichy. E passo esses anos submergido num meio onde as palavras de ordem de resistência e, simplifiquemos, as palavras de ordem de esquerda, dominam os espíritos. Vem a libertação na qual sucumbe a direita, identificada com Vichy, Pétain, Darlan e mesmo o nazismo.

Quanto a mim decido preparar-me para o ensino superior porque não sabia fazer mais nada do que falar e escrever o Francês e desenrascar-me um pouco em Latim e Grego. E vejo-me em Paris, em Louis-le-Grand, num meio que me é totalmente estrangeiro, já que 99,9% dos alunos eram filhos de pequenos burgueses que cultivavam um sentido particularmente gratuito das ideias que eu não tinha. Eu era um meridional exigente, bastante seco, bastante duro, e acreditava em certas ideias, certos mitos, certos valores.

Mais tarde encontro Sartre, torno-me seu assistente e dou por mim envolvido nas secções da Intelligentsia francesa e descubro, não sem algum espanto, que todos esses intelectuais eram de origem burguesa mas adoravam o povo e a esquerda. Aí tens, disse para mim, que boa surpresa! Estas pessoas nunca viram um operário na vida, têm empregadas domésticas e criadas, mas são de esquerda. Era perfeito, mas olhava tudo aquilo com um olhar bastante crítico e mesmo bastante trocista. Ainda que tenha sido um intelectual de esquerda durante esses anos, fui um intelectual de esquerda curioso, céptico, em alerta e com um enorme sentido de ironia.

E depois, pouco a pouco, vi de que era feita essa espécie de idealismo. Duma enorme ingenuidade e mais ainda ao nível dos indivíduos, dos meus confrades intelectuais, romancistas, filósofos, etc., tratava-se de uma liquidação da sua própria infância e as explicações da sua adesão à esquerda teriam perfeitamente lugar num manual de freudianismo para uso das populações subdesenvolvidas. Liquidavam a sua classe social, a sua família, o seu passado, de que tinham vergonha e que lhes pesava. Sucintamente, a sua escolha era autenticamente neurótica e dirigiam-se ao povo mais por ódio à sua classe social, ódio à sua família, por rejeição do seu meio de origem, do que por uma adesão profunda, verdadeira, viva. Dirigiam-se ao povo porque não provinham de lá. Eu, por que deveria fazê-lo se vinha de lá e conhecia esse povo, amava-o e pertencia-lhe.(…)»

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